quinta-feira, 12 de março de 2009

Crítica - Dogville

Lars Von Trier, juntamente com Thomas Vinterberg, criou na Dinamarca o manifesto Dogma 95, que lança uma nova proposta estética para o cinema, regido por dez mandamentos. O manifesto foi publicado 13 de março de 1995 em Copenhague e tinha por objetivo formular regras para um cinema mais realista e menos comercial. Os dez mandamentos ficaram conhecidos como “voto de castidade”.

Lars Von Trier é também o diretor de Dogville e assina o filme, contrariando o décimo mandamento do seu próprio manifesto. Ainda assim, o filme pode ser considerado como influenciado pelo movimento através da ausência de cenários (que são apenas imaginados pelos personagens e espectadores, a partir de linhas demarcatórias no chão), pelo uso da câmera na mão, pela ausência de trilha sonora. Poucos são os objetos e utensílios utilizados. Dogville é o primeiro de uma trilogia de filmes do diretor sobre os EUA, chamada USA: The land of opportunities. Em seguida apareceu Manderlay, uma fazenda onde impera a escravidão no sul dos Estados Unidos, e o terceiro, Wasington, ainda não foi filmado.

O filme começa com um plano plongée mostrando toda a cidade, isto é, um conjunto de linhas demarcadas no chão para delimitar casas e ruas. Esta pequena cidade no meio oeste norte-americano, durante a grande depressão de 1930, é o palco da história. A ela, chega Grace (Nicole Kidman) fugindo de gângsteres que a perseguiam. É recebida por Tom (Paul Bettany) que se dispõe a ajudá-la. Tom convence a cidade a aceitar Grace, mas, dentro de sua filosofia inspirada no quid pro quod – expressão latina que pode ser traduzida para o português como “isto por aquilo” – convence Grace a aceitar a ajuda da cidade, recompensando-a por isto, oferecendo-lhe a única coisa que possuía, a sua força de trabalho. No princípio, a cidade não queria aceitar esta ajuda, mas logo vão arranjando trabalho para ela. Á medida que esconder Grace torna-se um risco maior para aquela população, pela presença da polícia à procura da protagonista, a cidade vai lhe impondo mais trabalho e menos regalias. O quadro se agrava e, após ameaças, chantagens, estupros (Chuck, Ben) e outras violências, Grace é amarrada com uma corrente cujas extremidades estão presas em uma roda de ferro bastante pesada (que mal ela consegue puxar!) e em uma coleira de ferro no seu pescoço, com um sino preso à coleira para denunciar uma possível tentativa de fuga. Estuprar Grace virou rotina de todos os homens daquela cidade, enquanto Tom assistia a tudo impassível.

Aquilo que para o espectador é fonte de impaciência e indignação, a imperturbável resignação de Grace em aceitar sem ressentimentos tudo que lhe acontecia, o conformismo que regia o seu comportamento diante de todo aquele sofrimento, mesmo as piores barbaridades, que fazia com que a cidade, pequena e supostamente pacata, regressasse aos horrores do período da escravidão, é, no entanto, uma atitude de um estoicismo de fazer inveja a Zenão, portanto, uma ação planejada. O estoicismo que Grace ensinava às crianças, filhos de Vera, ela própria o praticava, perdoando e justificando a todos e a tudo, indiferente às desgraças pelas quais passava. Curiosamente, quando Vera (Patricia Clarkson) explicitamente invoca de Grace uma atitude estóica – assistir a quebra de todos os bonecos comprados com tanta dificuldade – ela não consegue e chora profundamente. Os bonecos são simples objetos externos, na visão estóica, mas, Grace lhes atribuía imenso significado e não resistiu à dor. Quando os gângsteres chegam à cidade, do diálogo da protagonista com o pai (James Caan), o poderoso chefão, surge uma Grace menos estóica do que era e que agora parece estar mais influenciada pela perspectiva filosófica de Tom – o quid pro quod, retribuindo, àquela pequena e amistosa cidade, do seu jeito: comanda e pratica, especialmente no caso de Tom, uma purgação final.

Nos Estados Unidos, Dogville foi visto como um filme anti-americano, mas parece ser muito mais uma alegoria da condição humana. A solução encontrada por Grace para a cidade parece ser a única alternativa encontrada pelo diretor para a humanidade.

2 comentários:

Rafael Carvalho disse...

Assisti a pouca coisa do Dogma 95, mas a proposta de Dogville me parece bem diferente, embora seja influenciada pelo movimento. Ainda lembro do susto que tomei quando comecei a assistir e me deparei com aquele cenário "imaginário" e praticamente surreal. Outro susto ainda me pegou no final quando Grace dá aquela ordem para matar a todos.

Sem exageros, Dogville é um dos grandes filmes da década, obra rara de um cineasta geniosos e disposto a alfinetar. Me encanta a forma como ele, lentamente, transforma hospitalidade em agressão, num crescendo de tensão incrível. Uma pérola esse filme!!!

Anônimo disse...

Não me lembro de ter assistido um filme que me deixasse tão intrigado como o Dogville. Um filme sem cenário, parades, trilha sonora e que faz a imaginação mais infértil produzir estimuladamente. Primeiro: o tema no inglês precário pode ser traduzido por Vila Cachorro ou Vila de Cachorro. Segundo, a surpresa com os personagens, tendo destaque Tom ( Paul Bettany) parecia ser o bonzinho e se revelou, ao meu ver, essencialmente ruim dentro da filosofia que ele mesmo não sabia explicar. Mostrando assim que o ser humano tem capacidade para camuflar comportamentos egoistas.
Grace (Nikole Kidman) na tentiva de ardua de buscar sentimentos nobres nos seres humanos , descobre da forma mais cruel possível que isso é praticamente impossível. Tomar a decisão por aniquilar todos os moradores da cidade, não foi difícil já que eles (os moradores) destruiram o que lhe restava. " O mundo não perceberá a falta desta cidade", ou foi algo similar. Morte a todos e apenas o Cachorro Moisés sobreviveu a amargura implantada pelos algozes dos sentimentos de Grace. Apenas Moisés teve o valor dele acima do ser humano. Vale realmente apena assistir.