Barravento (1961) é o primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, o cineasta brasileiro mais influente e o mais conhecido no exterior, produzido no período que ficou conhecido como a “nova onda baiana” no cinema (1958/1962). O filme também faz parte do que a professora Maria do Socorro Carvalho chamou de “trilogia da fome”, isto é, aqueles três filmes que produzidos na Bahia na mesma época tinham como temática de fundo a pobreza e a fome: Bahia de Todos os Santos (1960), de Trigueirinho Neto; A grande feira (1961), de Roberto Pires e Barravento. Em todos três, o protagonista é representado por Antônio Luís Sampaio recebendo os nomes de, respectivamente, Pitanga (nome que viria a ser adotado pelo ator como seu nome artístico – Antônio Pitanga), Chico Diabo e Firmino. Estes filmes, entre outros, sugerem uma origem baiana do Cinema Novo.
Curiosamente, Barravento começa sob a direção de Luis Paulino dos Santos, que teria atrasado o cronograma de filmagem, enquanto Glauber fazia parte da equipe como diretor artístico. Contudo, segundo uma versão, Paulino abandona as filmagens no meio. Na versão do crítico e professor André Setaro, Glauber teria dado “um verdadeiro golpe”, destituído o “amigo” e assumido a direção, refazendo o roteiro, juntamente com José Telles de Magalhães, e dando novo destino ao filme. Mas o próprio Setaro reconhece que toda essa história ainda está “muito mal contada, precisa ser desvendada”. Já mostrei que não faltam elementos para que Barravento seja inscrito na história do cinema brasileiro como um filme importante e envolvido em polêmicas.
É de outra ordem, entretanto, a questão que quero chamar a atenção no filme Barravento. Ao personagem de Antônio Pitanga (Firmino) sempre foi atribuída a representação do revolucionário. Mas qual é a ética que Firmino representa no filme? Esta questão parece-me um problema em Barravento. Uma das frases de Firmino, dita com muita ênfase e convicção, é:
“Já larguei esse negócio de religião, Candomblé não resolve nada, nada não. Precisamos é lutar, resistir. Nossa hora está chegando irmão”.
Nestas frases há duas afirmações categóricas: a primeira, condenando peremptoriamente a religião; a segunda, conclamando a comunidade a lutar. São dois pontos de vista que se inserem dentro de uma mesma perspectiva. Há uma perfeita sintonia, há total coerência entre as duas afirmações. O fundamento da condenação está numa concepção de marxismo de manuais que aponta a religião como “o ópio do povo”, como o fator responsável pela alienação dos homens, por um lado, enquanto a luta seria o verdadeiro caminho da emancipação dos mesmos, por outro. Mas o problema começa quando Firmino resolve recorrer ao candomblé para fazer um despacho contra Aruã. Firmino vai a mãe de santo, que não o atende, em seguida a pai Tião e pede um “despacho para estragar a rede e acabar com Aruã”. Pai Tião aceita o trabalho e o despacho é feito. Na pescaria a rede se rompe, mas Aruã escapa incólume. Firmino condenava publicamente o candomblé, mas, ao recorrer ao despacho, podemos perguntar: seria ele ainda um crente? Ele alega ter sido a 1ª e última vez que se envolveu com feitiçaria e ameaça: “vou levantar um barravento a ponta de faca”. Mas não será a última vez que recorre à religião como expediente para promover sua luta. Os pescadores costuram a rede e Firmino a destrói novamente. Cota vê o fato e ele a ameaça, pois sabia que se Cota contasse à comunidade ele estaria perdido. Cota silencia, mas não concorda com ele e lhe diz: “Firmino você cortou a rede, vai ser uma desgraça!”. Ele responde: “Meu pessoal lá da cidade sabe que as coisas vão melhorar, foi por isso que eu cortei a rede, a barriga precisa doer mesmo, quando tiver uma ferida bem grande então todo mundo grita de vez”. A ação de Firmino é racional com relação aos fins: o diretor faz o protagonista agir de acordo com o espírito do seu tempo (ou com a dialética tupiniquim que vigorava na época), de que “quanto pior, melhor!”. Quanto mais fome, mais revolta dentro desta lógica. Portanto, a ética que guia Firmino encontra seu fundamento moral na revolução. Assim como para o nacionalista a nação está acima de todos os bens e direitos individuais, para o revolucionário a revolução para promover a emancipação social dos homens está acima dos males que eventualmente possa causar, mesmo que sejam àqueles a quem ela procura benecifiar, no seu processo. Para Firmino, tudo que possa contribuir com a revolução é moralmente válido, apesar de, em princípio, a comunidade não aceitar seus métodos nem entender seus objetivos e ainda que suas ações pareçam trazer mais prejuízos do que benefícios à comunidade, ao menos de imediato.
Quando nada parecia abalar as convicções religiosas daquela colônia de pescadores, Firmino recorre mais uma vez à expedientes religiosos. Não se constrange em pedir a Cota que quebre o encanto de Aruã, que faça sexo com ele, o que, na crença religiosa da comunidade, significava quebrar a proteção de Aruã. Cota alega que “mulher que encostar nele, morre!”. Firmino responde: “Morre nada, o que mata muito é fome, é bala, é chicote!”. Apela para o amor de Cota por ele, Firmino. Cota termina por atender o pedido. Novamente, Firmino parece se guiar inspirado numa ética do “tudo pela causa”, mesmo que isto possa ferir pudores pessoais ou atingir pessoas da convivência íntima, como Cota. Depois de seduzir o velho pescador Vicente, pai de Naina, a se jogar no mar durante a noite, alegando ter visto Yemanjá chamá-lo, Firmino sai pela vila de pescadores a espalhar que presenciou Aruã tendo relações sexuais com Cota, na praia, na noite anterior, a noite do barravento. Chico sai de jangada, juntamente com Aruã, em busca de Vicente. Chico volta morto, Vicente desaparece no mar, mas Aruã regressa ileso. Na sua luta para provocar a ruptura do status quo na comunidade, Firmino usa Cota, é o responsável indireto pelas mortes de Chico e Vicente, mas tudo isso são apenas ações necessárias, de curso planejado, que ele faz sem qualquer sinal de remorso, de arrependimento. Encarna os princípios de um Maquiavel dos trópicos, do Terceiro Mundo. De qualquer forma, é a Aruã que ele atribui a culpa: “O culpado foi Aruã que renegou o santo, eu vi a miséria ontem de noite, ele estava com Cota na mesma hora que barravento chegou acabando tudo. Quem devia pagar era ele para não ficar enganando os outros dizendo que é santo, quem já viu santo de carne e osso. Chico foi pro mar pensando que tava protegido e acabou morrendo. É preciso mudar a vida de Aruã, ele é homem igual aos outros, gosta de mulher e não domina o mar”. O encanto estava quebrado, no roteiro das crenças da comunidade. O caos se instala. Aruã ataca Firmino, lutam, Firmino vence a luta, poderia matá-lo, mas preserva a vida de Aruã pois este tem um papel a cumprir na estratégia política de Firmino, ele puxa Aruã pelos cabelos e grita: “É Aruã que vocês devem seguir, o Mestre não, o Mestre é um escravo!”. Aqui fica evidente que não se trata de uma luta pessoal de Firmino contra Aruã, mas uma luta do que estes representam. Aruã discute com o Mestre, rompem. Aruã vai ao encontro de Naína e lhe diz: “Vou para a cidade trabalhar para a gente ter uma rede nossa. Firmino é ruim, mas tem razão, ninguém liga para quem é preto e pobre. Nós temos que resolver a nossa vida e a de todo mundo, agora eu tenho coragem”. O Mestre parece desolado, isolado. Aruã sai por onde Firmino chegou, pelo Farol de Itapuã, Farol que, metaforicamente, ilumina os novos caminhos de Aruã como futuro líder na emancipação da comunidade de Buraquinho. O diretor nos oferece uma solução política para a exploração e a dominação a que está submetida a vila de pescadores e a esta solução subordina todo o conflito ético que é mediado pelos limites elásticos dos interesses e das estratégias políticas.